O Modelo Projetivo / Robin Evans

Geometria tem uma ambígua reputação, associada tanto a idiotice como a inteligência. No melhor dos casos, existe algo desesperadamente não comunicativo sobre ela, algo mais que ligeiramente removido do resto da experiência para confrontar sua grande pretensão de verdade. Flaubert, em Dicionário de Ideias Feitas, define um geômetra como “viajando em estranhos mares de pensamento – sozinho.” E quando Joseph Conrad desejava caracterizar o fútil esforço de concentração feito pelo sincero porém mentalmente retardado jovem Stevie em O Agente Secreto, ele o descreveria como “sentado muito bem e quieto numa mesa, desenhando círculos, círculos, círculos; inumeráveis círculos, concêntricos, excêntricos, um cintilante redemoinho de círculos que por sua emaranhada multidão de curvas repetidas, uniformidade de forma, e confusão de linhas interseccionadas sugeria uma versão de caos cósmico, o simbolismo de uma arte insana pretendendo o inconcebível.”

Existiam, e ainda existem, arquitetos com uma aparente fé ilimitada no poder da geometria. Buscam formas e medidas que esperam revelar o mistério da sua vocação e ao mesmo tempo trancar o mistério dentro de um lugar como um segredo profissional, ou até como um segredo pessoal. Nós podemos armar-nos contra tal ingenuidade e ainda reconhecer que todos os arquitetos irão de tempos em tempos adotar a postura de Stevie, assemelhando-se muito a ele quando envolvidos nos devaneios do projeto. Nessa postura, eles podem tornar-se suscetíveis às mesmas ilusões das quais facilmente podemos imaginar que Stevie foi vítima. Existem boas razões para isso. Sem a fé do arquiteto de que linhas geometricamente definidas irão engendrar outra coisa mais substancial e ainda discernível através do desenho, sem fé na mensagem genética inscrita no papel, não existe arquitetura. Tem sido dito com frequência que arquitetura é mais que o mero edifício. Nesse sentido, ele é consideravelmente menos.

Geometria é um tema, arquitetura outro, mas existe geometria na arquitetura. Sua presença é assumida tanto como a presença da matemática é assumida na física, ou letras em palavras. Geometria é entendida como sendo parte constitutiva da arquitetura, indispensável a ela, mas não dependente dela em nenhuma maneira. Os elementos da geometria são então concebidos como comparáveis aos tijolos que fazem uma casa, os quais são confiantemente fabricados em outro lugar e entregados no local prontos para serem utilizados. Arquitetos não produzem geometria, eles a consomem. Tal seria pelo menos a conclusão inevitável de qualquer um que revisitasse a história da teoria arquitetônica. Vários tratados-chave do Renascimento começam com um breve resumo de figuras geométricas e definições emprestadas de Euclides: ponto, linha, plano, triângulo, retângulo, e círculo. Sebastiano Serlio, por exemplo, iniciou seu First Book of Architecture (1545, Tradução ao inglês 1611) afirmando “quão indispensável e necessário é a mais secreta Arte da Geometria.” Sem ela, o arquiteto não é mais que um empilhador de pedras, disse ele, e logo continuava explicando como o que ele chamava as flores colhidas do jardim de Euclides dotaria o edifício de razão. Sua metáfora peculiar, através da qual o que entendemos estar na raiz da arquitetura é descrito como seu ornamento, dá a impressão de que o fundamento é em certo sentido um acessório ou comentário; um comentário porque edifícios poderiam e existem sem ele, um fundamento no qual geometria oferece certeza em situações cercadas de dúvidas.

A tarefa de um fundamento é ser firme como uma rocha. É suposto para ser inerte. Coisas mortas são mais fáceis de manejar que coisas vivas; elas podem não ser tão interessantes, mas são menos problemáticas. A partir do ponto de vista do arquiteto buscando firmeza e estabilidade, a melhor geometria é seguramente uma geometria morta, e talvez isso, geralmente, seja com que a arquitetura é feita. O que eu quero dizer com geometria morta é um aspecto da geometria que já não está em desenvolvimento interior. Triângulos, retângulos, e círculos como definidos em Euclides tem sido muito fatigados como temas de pesquisa geométrica. À medida que esses elementos perdem seu mistério, o interesse neles diminui, mas nesse estado de desvalorização eles se tornam mais valiosos do que nunca, porque seu comportamento é completamente previsível. Consequências podem ser previstas. Geometria morta é uma inoculação contra a incerteza.

Até o momento, a atitude do arquiteto frente a essa geometria estabilizada tem sido sempre dupla. Para o mundo dos negócios, sua presença é anunciada com orgulho, enquanto dentro da profissão, arquitetos tendem a ser suspeitos dos seus poderes sobre o que fazem. Seu valor deve estar em sua mortandade, mas se ele não é posto sob controle, pode reviver, como um monstro, ou a morbidade pode propagar-se, como uma doença.

O ideal é de uma arte vital e criativa apoiada na segura verdade morta da geometria. A própria afirmação é suficiente para nos fazer pensar duas vezes. É a geometria na arquitetura realmente tão confiável? Como devemos ver, é bastante difícil dizer onde está exatamente a geometria na arquitetura. Indícios surgem de vários lugares. Ou é móvel, o que é um sinal de vida, ou é numeroso e difícil de categorizar.

Mas a ideia estabelecida do fundamento firme tem sido apoiada por outras definições que podem ser não menos insuportáveis. Por instância, isso se ajusta perfeitamente com a percepção de que geometria é uma ciência racional, enquanto arquitetura – a arte da arquitetura – é um tipo de juízo intuitivo. De acordo com essa aparente convincente distinção, geometria dá à arquitetura uma base racional, mas não a confina à racionalidade. Os aspectos criativos, intuitivos, ou retóricos da arquitetura podem portanto viajar nas costas da sua racionalidade geométrica. Isso é o que Guarino Guarini, o matemático e arquiteto do século XVII, transmitiu com sua concisa definição: “Arquitetura, apesar de dependente da matemática, é contudo uma arte da adulação.” Enquanto essa divisão entre base e superestrutura tem sido construída numa verdade demonstrável presente numa grande quantidade de edifícios históricos, ela não é nem universal nem necessária. As flores de Serlio sugere tanto quanto, e a própria arquitetura de Guarini ameaçava a dependência que ele tinha anunciado, colocando em jogo uma nova e muito menos previsível geometria. Ou ciência tinha interferência com arte ou era difícil dizer a diferença entre ciência e arte.

Geometria costumava ser chamada a ciência do espaço. Por várias razões essa definição foi descartada, logo geometria não tem mais um óbvio objeto de caso. A indagação surge, como então é isso uma ciência? De que ela é ciência? Alguns matemáticos tem inclusive proposto que geometria, junto ao resto da matemática, deveria ser reclassificada como uma humanidade ou como uma arte, na medida em que ela é aparentemente guiada por um senso estético. “Um matemático, assim como um pintor ou um poeta é um criador de padrões”, escreveu G. H. Hardy, caracteristicamente. O papel da intuição na matemática foi também extensamente discutido no decorrer do século XIX. Como resultado, muitos matemáticos profissionais não acreditam somente na ideia de que a justificativa última do seu trabalho não é a mera verdade mas a beleza; eles também consideram a intuição como essencial para o desempenho ou apreciação da matemática de qualquer tipo. Não há necessidade de justificar essas ideias. Eu só quero apresentá-las como contrárias ao ordinário entendimento do que é geometria, e paralelas ao ordinário entendimento do que é arte.

O entendimento mais passageiro dos recentes escritos sobre a natureza da matemática convencerá qualquer um que a definição de arquitetura como uma arte nasce da ciência porque está fundada na geometria, mas faria pouco sentido visto desde o lado dos matemáticos. Visto desde aquele lado que parece não ver muitas divisões. Desde o ponto de vista dos matemáticos, a definição poderia ser reescrita assim: arquitetura é uma arte nascida de outra arte porque está baseada na geometria, a qual é uma arte visual. Essa definição reescrita não deve passar sem refutação, porque não podemos ter certeza de que arquitetura é uma arte ou que geometria é base para ela, ou que beleza em geometria tenha algo a ver com beleza em arquitetura, mas pelo menos ela nos permite abandonar o prejuízo que ainda carrega o entendimento da geometria desde dentro da arquitetura.

Os próximos capítulos mostram que geometria não sempre estabiliza arquitetura; que a geometria em arquitetura não está sempre morta no momento de seu emprego, apesar de que ela deve ter sido morta depois; e que, em arquitetura, geometria expirada às vezes pode ganhar vida depois da morte. Eles mostram também que a percepção do papel da geometria tem sido vastamente afetada por uma omissão coletiva. O primeiro lugar que qualquer um olha para encontrar a geometria em arquitetura é na forma do edifício, e logo talvez na forma dos desenhos do edifício. Esses são os locais onde a geometria tem estado, de modo geral, apática e dormente. Mas geometria tem sido ativa no espaço entre e no espaço de cada limite. O que conecta pensamento a imaginação, imaginação a desenho, desenho a edifício, e edifício a nossos olhos é projeção de uma forma ou outra, ou processos que escolhemos para modelar em projeção. Todas são zonas de instabilidade. Eu reclamaria agora que as questões ocupadas sobre a relação da arquitetura com a geometria ocorre nessas zonas. Composição, que é onde a geometria em arquitetura é usualmente procurada, pode ainda por conveniência ser considerada o ponto crucial do problema, apesar de não ter importância em e para si mesma. Ela obtém todo seu valor por meio de vários tipos de espaços projetivos, quasi-projetivos, ou pseudo-projetivos que a rodeiam, pelo que é somente através deles que ela pode tornar-se disponível à percepção. Essa é a tese deste livro.

A distinção entre composição e projeção em arquitetura tem sua contraparte na geometria matemática. Primeiro veio uma geometria cujos ideais foram bem adaptados para a medição de coisas. Isso foi organizado num consistente corpo de proposições pelos gregos e obteve sua clássica exposição em Elementos de Euclides. A geometria euclidiana estava preocupada com as razões e equidades de linhas, áreas e ângulos. Apesar de abstrata, apesar de contemplativa em espírito, apesar de distante de aplicações práticas, ela deve certamente haver surgido de, e facilmente se transforma de volta em, tarefas de configurar artefatos, projetar edifícios, levantar dados topográficos. Depois veio uma geometria já não mais preocupada com medir as propriedades intrínsecas de objetos: geometria projetiva.

Atenção deslocada, a princípio lentamente e cautelosamente, do objeto per se a suas imagens: sombras, mapas, ou quadros. É fácil perceber intuitivamente que qualquer objeto rígido propagará uma diversidade de possíveis imagens de si mesmo no espaço, que essas imagens variarão por contínua deformação, não acidentalmente, e que enquanto não é possível existir uma imagem fundamental, nós podemos contudo reconhecer algum tipo de permanente identidade a partir de tais várias imagens. É igualmente fácil de perceber intuitivamente que as imagens de um objeto rígido são elásticas. Embora consistentes em suas deformações, elas não conservam medidas e ângulos calculados. Na geometria euclidiana, é sempre como se as figuras dos livros possam ser aplicadas como modelos diretamente a um material, ao passo que as figuras da geometria projetiva pertencem a algum item escondido, volátil, que permanece fora de alcance. O entendimento chave no desenvolvimento da geometria projetiva foi que enquanto figuras deformam de acordo a um ponto de vista, linhas de visão não deformam. Assim, rigidez é transferida dos objetos ao meio de sua transmissão, o qual é mais facilmente imaginado como luz. Por tal motivo, Henri Poincaré põe o contraste em termos de objeto físico de estudo: “Alguém estaria tentado a dizer que geometria métrica é o estudo dos sólidos, e geometria projetiva, da luz.” Alguém estaria tentado a adicionar, seguindo a William Ivins e outros, uma distinção sensual: geometria métrica é uma geometria do toque (háptico), porque a congruência de figuras é estimada por quanto elas se sentem a mesma quando colocadas juntas, enquanto geometria projetiva é uma geometria da visão (óptico), porque a congruência de figuras é estimada por quanto elas se parecem a mesma a partir de um dado ponto de vista. Nenhuma caracterização é completamente verdadeira, como Poincaré continuou a explicar, mas elas dão uma primeira indicação esboçada da diferença, e nos permitem ver por que a composição arquitetônica é uma empresa tão peculiar: uma organização métrica julgada opticamente, mistura um tipo de geometria com o outro tipo de apreciação. Talvez essa seja razão suficiente para a confusão que a rodeia.

Por muitos séculos (do XV ao XVIII), o desenvolvimento da geometria projetiva encontrou alguns dos seus estímulos em procedimentos arquitetônicos e até em arquitetos. No entanto, minha principal preocupação nesse livro não é com a certa vez fértil relação entre projeção arquitetônica e geometria matemática, mas com a relação entre projeção e arquitetura, a qual é menos compreendida. Eu nunca pretendi escrever uma breve história da geometria e arquitetura através dos tempos. Poderia ser argumentado que a interação mais intensa entre os dois temas ocorreu durante o século XVII, o qual está envolvido mas não reside no que segue. Em vez de uma visão sinóptica, decidi me concentrar em vários tipos muito específicos de interação, frequentemente me enfocando em edifícios individuais para tanto. O escopo é amplamente restrito à Europa do século XV ao XX. A área de cobertura é limitada e incidental, mas não significa que seja acidental ou arbitrária. Um tratamento episódico como esse não tem nenhuma vantagem a menos que os episódios insinuem alguma outra coisa diferente do fato da sua própria ocorrência única. Algumas vezes tentei indicar aspectos dessa inteligência extra, mas minha esperança seria que o leitor possa ganhar mais facilmente na leitura o que eu fui incapaz de estabelecer como conclusões no escrito, e eu digo isso não para me exonerar da tarefa de generalização, mas meramente para expressar a esperança de que este seja um livro como muitos outros que eu li.

A história da projeção arquitetônica está somente começando a ser investigada. Ela tem desempenhado um papel bem pequeno no desenvolvimento da teoria da arquitetura. Somente dois arquitetos bem conhecidos deram a ela um lugar significativo nos seus escritos – Philibert Delorme e Guarino Guarini –, e comentários modernos sobre suas obras tem consistentemente ignorado ou marginalizado esse aspecto do que eles produziram. Discussões gerais sobre o assunto tem contudo se desenvolvido ao ponto em que é possível identificar um consenso: à medida que projeção altera a arquitetura, isso deve ser tomado com suspeita. Esse consenso foi atingido porque projeção é considerada uma função própria da ciência da engenharia e alienígena à arte da arquitetura. Ou projeção é aceitável porque é transparente, ou ela passa entre a imaginação criativa e o objeto criado como uma nuvem negra, reforçando o já enorme prejuízo contra qualquer coisa técnica. Essa visão é desafiada por uma narrativa histórica anterior ao século XIX. É sensato aos arquitetos permanecerem prudentes com a projeção, mas seria estúpido de sua parte desconsiderá-la.

Não é isso reminiscente de coisas ouvidas em outros lugares? A maneira como a arquitetura é dividida entre desenho geométrico e edifício pode ser comparada à divisão entre escritura e discurso. E não há sido demonstrado que há um tremendo prejuízo filosófico contra a escritura que nos encoraja pensar no discurso como autêntico, com a escritura sendo uma cópia questionável do discurso, secundária, de segunda mão, de segunda categoria, apesar de sua aceitação universal? Não há sido posto em dúvida esse prejuízo? E não somos nós igualmente preconceituosos com o desenho geométrico em arquitetura? Sim, em todos os aspectos. Contudo, estaríamos bem aconselhados nesse momento a resistir à tentação que se apresenta e que já foi provada como irresistível para alguns. Não devemos assumir que uma certa semelhança nos dá permissão para tratar as duas situações como idênticas, deixando terminologia, argumentos, e conclusões trancados, estocados, e envasilhados da teoria literária, aplicando-as à arquitetura, e chamando o resultado uma teoria do nosso tema. Semelhança não é identidade; projeção ortográfica não é ortografia; desenho não é escritura e a arquitetura não fala.

Muito pode ser aprendido da teoria literária, inclusive circunspeção, também uma suficiente confiança de que o próprio tema para o qual uma teoria está sendo buscada é digno de alguma modesta indagação sobre o assunto. Em arquitetura, o problema tem sido que um paradigma superior surgido da matemática, ciências sociais, pintura, ou literatura está sempre ao alcance. Elas têm nos saciado com nossas próprias carências, mas a certo preço. Nós tomamos nossas teorias dessas regiões mais desenvolvidas somente para encontrar a arquitetura anexada a elas como um assunto satélite. Por que não é possível deduzir uma teoria da arquitetura a partir de uma consideração da própria arquitetura? Não arquitetura sozinha, mas arquitetura com outras coisas. Se tomarmos o problema de discernir coisas, não é só mantê-las separadas, mas ver mais facilmente como elas se relacionam entre si. Arquitetura pode ser feita de maneira distinta, mas não é autônoma. Ela toca tantas outras coisas, e nas suas bordas há uma atividade contínua. Uma fonte crucial de conhecimento para uma tal teoria seria portanto as numerosas transações entre arquitetura e outros tópicos, por exemplo, geometria.

Referência:
Robin Evans, "Introduction", em: The Projective Cast, The MIT Press, 1995.

Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi.

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "O Modelo Projetivo / Robin Evans" 24 Abr 2014. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/601285/o-modelo-projetivo-slash-robin-evans> ISSN 0719-8906

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